Em seu livro Ouça o Espírito Ouça o Mundo: como ser um cristão contemporâneo, o teólogo Anglicano John Stott dedica boa parte da introdução alertando sobre as tentativas de modernizar Jesus. Evocando uma pergunta do teólogo e mártir luterano Dietrich Bonhoeffer, Stott argumenta que "a tendência da igreja tem sido, em cada geração, desenvolver imagens de Cristo que se desviam do retrato pintado pelos autores do Novo Testamento". Cita ainda outro teólogo luterano, Helmut Thielicke: "Sempre e sempre de novo, a figura de Jesus tem sido terrivelmente amputada a fim de adaptar-se ao gosto de cada geração". Stott faz uma breve recapitulação histórica revelando os 'tipos' de Jesus que já foram (ou ainda são) retratados: o Jesus asceta; o Jesus, pálido galileu; Jesus, o Cristo cósmico; Jesus como o mestre do senso comum; Jesus, o palhaço; o Jesus Cristo superstar; Jesus como o fundador dos negócios modernos; o Jesus economista; o Jesus socialista; o Jesus revolucionário lutador da liberdade; o Jesus mágico. São tentativas que ilustram a tendência de moldar um Cristo que tenha apelo moderno. A pergunta de Bonhoeffer permanece mais do que nunca, inquietante: "quem é Cristo de fato para nós hoje?"
Nas últimas semanas muito repercutiu a declaração do presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva: "Se Jesus Cristo viesse para cá, e Judas tivesse a votação num partido qualquer, Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão". Esse 'Jesus' de Lula é um político bastante identificado com a fama que a classe possui no país: alguém que faz concessões, que negocia tudo e com qualquer pessoa para atingir seus objetivos pessoais, alguém sem nenhuma ética, um típico representante do congresso ou do senado nacional. Lula, muito criticado por causa da declaração, reconstrói seu próprio cristo de modo a justificar suas decisões e comportamentos. Por mais que a declaração tenha gerado polêmica, ela revela uma tendência e prática mais comum do coração humano do que gostaríamos de admitir. O Brasil, o país do jeitinho, da lei de Gérson e da corrupção, vê crescer uma igreja que não 'incomoda ninguém'. Isso parece acontecer exatamente devido às alianças feitas com 'judas' em nome da aprovação popular, dos privilégios e das mazelas que queremos justificar. Lula confessou o seu Jesus. Edir Macedo tem confessado o seu. Também Silas Malafaia, R. R. Soares, o bispo Waldomiro, Marco Feliciano e tantos outros confessam o seu Jesus. Quem é Jesus Cristo de fato para nós hoje?
Eu preciso também admitir que muitas vezes confesso um Jesus idolatrado, desfigurado, amputado. Isso porque tenho meus próprios interesses, medos, insegurança e limitações que ofuscam o Jesus crucificado. O Jesus que negocia com Judas se desvia da cruz. Ele não está imbuído de um propósito maior. Ele prefere ouvir a homens do que a Deus: "Nunca Senhor, isso nunca te acontecerá!" (Mateus 16.22). Facilmente nos escondemos atrás de um Jesus criado á nossa imagem e semelhança para nos justificarmos de nossas mazelas e motivações mais sombrias. Assim como Lula, muitas vezes também prefiro o Jesus que se alia com Judas a ter que seguir o caminho da cruz. O Jesus brasileiro, da malandragem, que não quer 'pagar de otário'. E, vamos nós nos tornando cada vez mais parecidos com aquilo que idolatramos (Salmo 115. 8). Na política, nos negócios, nas igrejas, encontramos muito mais fariseus do que cristãos humildes e dispostos a reconhecer o seu pecado. Não há confissão, pois não há arrependimento. Ninguém mais admite que há algo do que se envergonhar. O Jesus pós-moderno é o Jesus de cada um, feito daquilo que valorizamos: tem boca , mas não fala; ouvidos, mas não ouve; olhos, mas não vê; mãos, mas não apalpa; pés, mas não anda; nenhum som sai de sua garganta (Salmo 115).
E, assim é o povo brasileiro, inclusive a maior parte dos cristãos. São a imagem daquilo que idolatram: mudos, surdos, cegos, paralisados, atrofiados... Sal sem sabor, luz escondida sob as abóbodas das bacias-templo. Infelizmente, algo natural em tempos onde "quem determina o produto da firma são os especialistas em marketing, ao descobrirem o que irá vender, o que o público irá comprar" (Stott). Vivemos o tempo dos produtos personalizados. E, o cliente tem sempre razão. Qual é o Jesus que serve para você? O Jesus bíblico, descalço, empoeirado, que tocava em leprosos e que repreendeu os próprios discípulos para seguir suas convicções, esse não 'vende'. O Jesus que prefere ser traído e morto em vez de dividir 30 moedas, esse não cabe nos nossos padrões de vida. O Jesus do advento e do natal que se aproxima, como seria recebido se nascesse entre os cães sarnentos, as crianças com piolhos, os desempregados e bêbados de nossas periferias?
Jesus sabe bem lidar com as oportunidades de aliança e a tentação do poder (Mateus 4). Ser cristão é seguir a Cristo e, isso exige humildade e conversão diária. Precisamos discernir entre forma e conteúdo, o essencial e o periférico. Finalizo com quem iniciei o texto. Nas palavras de John Stott: "O desafio que temos diante de nós é o de apresentar Jesus à nossa geração de tal forma que seja, ao mesmo tempo, histórico e contemporâneo, autentico e atrativo, novo no sentido de recente (neos), mas não novo no sentido de ser uma novidade (kainos)". Quem é Jesus Cristo de fato para nós hoje? O Jesus que se alia com Judas, ou o Jesus que ousa manter a integridade nem que para isso precise repreender duramente um discípulo e amigo muito chegado (Mateus 16. 23)?
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